quarta-feira, dezembro 20, 2006

Do Blog do Poeta Fabrício Carpinejar: Campeão do Mundo











Nasci numa família de gremistas. Meu pai convenceu meus irmãos Miguel e Rodrigo a seguir com ele. Recebi uma camiseta do Grêmio como chantagem. Nunca usei: tecido de três listras era pijama. Vesti a camisa na bananeira do terreno baldio. Ficou lá amarelando com a chuva.

Cresci numa família de gremistas. Com irmãos soprando corneta, eu não torcia, eu me defendia em casa. A rivalidade arrebentou a porta do banheiro. Como só havia uma tevê em casa, sempre fui minoria. Apanhei algumas vezes, revidei outras. Em último caso, mordia e puxava cabelo. Meus dentes tortos serviam como abridor de lata.

Era para ter sido gremista. Fui colorado por teimosia, por não conter a voluptuosidade dos olhos quando avistava o uniforme vermelho. Não era questão de cor, era questão de temperamento. Não segurava a garganta com a entrada da multidão no estádio, os bordões alinhados, o coro grego, a unanimidade social de uma arquibancada.

Ser colorado foi o mais perto que cheguei do comunismo. Não havia ninguém para me levar aos jogos quando pequeno. Acompanhava meu pai no Gre-nal, na torcida adversária. Ficava quietinho, suspirando alto, louco para incentivar os jogadores. Tinha que me calar. Assisti, calado, várias vezes meu time ganhar. Absoluto silêncio, na impossibilidade de declarar meus gestos, meu gosto, minha vontade. De vez em quando, subia os ombros no gol do Inter, logo me recompunha e fingia xingar a zaga do Grêmio.

Ser colorado era uma desesperança. Uma resistência. As estrelas haviam sido preenchidas na geração anterior. Passei toda a década de 80 mudando de assunto na segunda-feira. Grêmio ganhou Brasileiro, Libertadores, Mundial, Brasileiro, Libertadores, não parava de crescer. Dos meus oito anos em diante, restava o caneco do café de manhã. Sofri humilhação, chacota, perdi a serenidade; de tanto xingar o juiz virei cafetão de sua mãe. Na entrada de Porto Alegre, um outdoor debochava que era a cidade do campeão do Mundo. Olhava com desdém, com despreparo para esconder a inveja.

Fui tricampeão brasileiro durante a pré-infância, ou seja, em coma - não contava. Perdi vários campeonatos nas finais e nas semifinais. Time do quase. Com dois filhos colorados, faltava argumento para as minhas desculpas e desculpas para meu argumento.

No último domingo, quando meu time ganhou do Barcelona, não telefonei para meus irmãos. Não xinguei os gremistas, não desaforei, não desabafei. Chorei mais soluços do que água. Estava redimido, não precisava provar nada. Ninguém ganha o mundo por recalque. O Inter fez alguma coisa sem depender de seu rival. Uma vitória por ele. Para ele. Uma vitória sem vingança. Por merecimento.

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